Anais EnAJUS 2023

ISSN 2674-8401

Interações de gênero e a existência de currículo oculto no ensino jurídico

Autoria: Isabelle Oglouyan de Campos, Lívia Gil Guimarães, Cecília Barreto de Almeida, Sheila Christina Neder Cerezetti

Informações

Sessão 9 - 24/10/2023, 08:00
Mediação: Leonardo Oliveira (Universidade de Brasília)

Resumo

“Sinto que minha opinião nunca é levada em conta”, “a minha voz não é ouvida”, “sou interrompida em minhas falas”, “não me sinto à vontade para expor a minha opinião, mesmo tendo lido o material previsto”, “sinto que meus colegas sabem muito mais do que eu, mesmo quando me preparo muito para a aula”. Essas frases, que revelam percepções e vivências comuns de alunas em salas de aula de uma destacada faculdade de Direito no cenário nacional, representam boa parte das inquietações que culminaram no desenvolvimento de estudo sobre as dinâmicas de inclusão e exclusão que operam nesse ambiente universitário sob a perspectiva de gênero. A análise dessas dinâmicas revelou a existência de um currículo oculto no curso jurídico, definido como conteúdos que, embora não formalmente categorizados como saberes a serem aprendidos (ou seja, como conteúdo programático), são informal e sistematicamente reproduzidos num determinado espaço educacional. Entre outros aspectos, trata-se de normas sociais, expectativas e visões de mundo que conformam e afetam o processo de ensino-aprendizagem, pois, reforçam ou questionam estereótipos e dinâmicas de gênero socialmente estabelecidas. Sabemos que a academia tem um papel essencial na formação de profissionais e o que se ensina nas salas de aula das faculdades de Direito podem acompanhar os alunos durante toda a sua vida profissional. É preciso, portanto, pensar quais impactos esse currículo oculto pode ter nos(as) futuros(as) operadores(as) do Direito que serão responsáveis por, de maneiras diversas, franquear o acesso à justiça a todos e todas as cidadãs do país. Entendemos que jogar luz sobre o que está escondido pode ajudar a repensar o cenário de desigualdade de gênero nas salas de aula e ressignificar esse espaço, formando operadores(as) mais atentos e preparados à diversidade e à inclusão. A presente pesquisa se apresenta, portanto, como um convite à reflexão sobre a temática de interações de gênero no âmbito do ensino jurídico, que precisa ser estimulada dentro das universidades para tornar o seu ambiente mais propício à formação de profissionais capacitados para lidar com um mundo de diferenças e desigualdades no cenário nacional e para garantir o acesso à justiça a todos e todas. Em iniciativa inédita no Brasil, a pesquisa buscou compreender como e de que forma o processo de ensino e aprendizagem nas salas de aula de uma importante faculdade de Direito do país é marcado por dinâmicas de gênero. Para descrever e analisar as interações discente-discente, docente-discente e, ainda, docente-docente, foi realizado um esforço empírico coletivo, pautado em métodos ainda pouco comuns no Direito, tais como a observação participante, com inspiração no método etnográfico, e as entrevistas abertas com discentes. A primeira pergunta da pesquisa consistiu em saber se as alunas interagiam e participavam mais ou menos que os alunos à medida que o desenvolvimento do curso avança. A hipótese inicial era de que as vozes das alunas eram silenciadas à medida que o curso de direito progredia. Apesar de não termos acompanhado uma mesma turma ao longo dos anos, os nossos relatórios de campo mostraram uma maior participação em disciplinas específicas dos primeiros anos, se comparada às turmas que estavam prestes a se formar. Essas disciplinas apresentavam alguns elementos comuns: (i) uma metodologia mais participativa de ensino, (ii) o conteúdo da aula despertar o interesse dos alunos e (iii) o conteúdo da aula estar ligado a questões de gênero. Nossas entrevistas também revelaram que as mulheres têm uma maior participação nas monitorias do que nas aulas essencialmente expositivas, porque se sentem mais à vontade para se expor quando sentem que tiveram tempo de estudar satisfatoriamente o material indicado. A segunda hipótese era a de que poderia haver diferenças nas interações e participações entre as turmas do noturno e do diurno do curso. Isso porque, os períodos tinham algumas diferenças na composição do perfil discente em termos de idade, classe social e raça. Foi um desafio avaliar as relações entre esses marcadores sociais e o gênero, tanto pela pouca diversidade das turmas, quanto pela dificuldade de heteroidentificação que realizamos durante a observação participante. De todo modo, podemos indicar que as turmas eram majoritariamente compostas por pessoas brancas, ressaltando que essa pesquisa foi realizada antes da aprovação das cotas étnico-raciais pela faculdade. A relação entre idade e gênero indicou que homens mais velhos exerciam papéis de autoridade frente às suas colegas de classe e, até mesmo, a docentes mulheres - mesmo quando essas docentes eram mais velhas que esses homens. Outra hipótese era a de que o gênero dos docentes poderia influenciar as interações de gênero em sala de aula. Verificamos que professores homens podem representar um desestímulo inicial para a participação das alunas; mas que isso pode ser superado a partir de posturas que estimulem a participação do alunado. Um dos achados indica que as percepções dos alunos em relação aos docentes são influenciadas por estereótipos de gênero. Professores homens são vistos como pessoas complexas e integrais, podendo construir suas autoridades com diferentes elementos –como rigidez, proximidade e humor. Já as professoras mulheres são entendidas como pessoas mais planas, enquadradas em extremos – próximas e afetuosas (como “mães”) ou distantes e rígidas (como “megeras”). Por fim, tínhamos a hipótese de que a metodologia de ensino poderia influenciar as interações de gênero em sala de aula. Como a maioria das aulas que observamos eram expositivas, tivemos dificuldade na comparação entre métodos. De todo modo, mesmo o método expositivo era aplicado com nuances pelos docentes: com maior ou menor estímulo à participação, e com diferentes níveis de interações entre os alunos e entre alunos e docentes. Identificamos, ainda, que a divisão em grupos menores, o debate e a atenção às questões de gênero em sala de aula foram importantes para promover maior participação de alunas mulheres. Os achados de pesquisa identificam a existência de um currículo oculto na faculdade de Direito estudada, o qual reproduz relações de poder e reforça estereótipos e dinâmicas de gênero socialmente estabelecidas. O estudo ajuda a reforçar a importância do papel que docentes, discentes e a instituição possuem na formação das futuras gerações de operadores e operadoras do Direito e salienta a necessidade de que estejam atentos a essas questões, para que seja possível refletir e reconstruir as relações sociais afetadas, gerando impactos para além da universidade – como nas demais carreiras e instituições jurídicas, responsáveis pela garantia do acesso à justiça. O acesso à justiça é necessariamente atravessado pelos profissionais e pelas instituições responsáveis pela sua garantia e pelo seu exercício e, portanto, é fundamental que haja um olhar atento às dinâmicas de inclusão e exclusão de gênero contidas nas etapas iniciais de suas formações. 

Palavras-chave

Ensino jurídico; Formação de operadores do direito; Inclusão social; Acesso à justiça; Direito à Educação; Discriminação de gênero.
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