Anais EnAJUS 2023
ISSN 2674-8401
Litigiosidade e Gratuidade da Justiça: verdades e pós-verdades
Autoria: Karinne Emanoela Goettems dos Santos
Prêmio Tomas de Aquino Guimarães - Categoria Ensaio teórico
Informações
Sessão 24 - 25/10/2023, 14:00
Mediação: Eloisa Gonçalves Torlig (Universidade de Brasília)
Resumo
Litigiosidade e Gratuidade da Justiça: verdades e pós-verdades INTRODUÇÃOO presente estudo analisa a suposta correlação entre a gratuidade da justiça e a alta litigância no Brasil, levando em consideração os dados do CNJ e os indicadores socioeconômicos da população brasileira (IBGE). A pesquisa analisa e avalia, por meio do método hipotético-dedutivo, o descompasso entre as políticas públicas “eficientistas” e o cenário da desigualdade social, que miram no regime de gratuidade em busca de uma racionalidade do sistema de justiça, na contramão da realidade social e da perspectiva democrática do acesso à justiça. ANÁLISES E RESULTADOSDe acordo com o art. 99 do Código de Processo Civil, para a concessão da gratuidade, o interessado deverá firmar declaração de insuficiência financeira. Não há outro critério legal, tampouco tabelamento de salários (ALVES, 2006). Diante deste cenário, vozes e narrativas tem se levantado com o intuito de correlacionar a concessão da gratuidade aos números da litigiosidade no país. No Congresso Nacional, os Projetos de Lei nº 5900/2016 e nº 6160/2019 foram propostos sob o argumento que a “litigância sem risco” decorre gratuidade concedida sem critérios objetivos, razão pela qual pretendem padronizar a concessão da gratuidade em número de salários mínimos e impor a cobrança de custas nos Juizados Especiais Federais.Ocorre que, primeiro, nenhuma pesquisa ou dados estatísticos até o momento sustentam essa correlação (WATANABE, 2018). Segundo, tampouco os dados oficiais existentes sustentam tal investida, pois até mesmo o Relatório Diagnóstico das Custas Processuais praticadas pelos Tribunais (CNJ, 2019) concluiu pela “necessidade de novas investigações sobre a questão e seus efeitos sobre a judicialização. Terceiro, há uma vinculação indevida do tema com o custo do sistema de justiça. A título de exemplo, a justiça estadual é o ramo da justiça que mais concentra despesas para o Poder Judiciário (57% em 2018) e, paradoxalmente, é a justiça que apresenta o menor percentual de processos baixados com gratuidade (28% em 2018). Na verdade, o instituto da gratuidade deve ser organizado para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça da população vulnerável. Mirar na gratuidade sob o argumento de déficit é naturalizar uma justiça elitista, subvertendo o mais básico direito humano (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).Outro ponto a ser avaliado é a análise da litigiosidade no que respeita ao perfil das demandas e dos litigantes. Na justiça estadual, são mais frequentes os litígios relacionados a contratos, obrigações e responsabilidade civil e de consumo (CNJ, 2022). Já quanto aos maiores litigantes, o Painel dos Grandes Litigantes (CNJ, 2023) confirma quem são e com que frequência os chamados litigantes organizacionais e habituais (GALANTER, 2018) transitam pelo sistema de justiça, corroborando os dados dos Relatórios “100 Maiores Litigantes” de 2011 e 2012 (CNJ), que demonstram a presença marcante de grandes grupos financeiros, e da própria Fazenda Pública na área tributária e previdenciária. Segundo Marc Galanter (2018), entre outras evidências, os litigantes habituais possuem uma performance distinta dos litigantes eventuais, pois atuam em economias de grande escala, minimizando seus riscos, além de relações informais e privilegiadas que estabelecem no ambiente de processo legislativo e judicial.Um último ponto, e não menos importante, é o quadro de desigualdade que afeta o exercício de direitos no Brasil. Primeiro, há que se registrar uma falsa premissa de que o cidadão “abusa” do sistema de justiça quando amparado pela gratuidade. Tal tese busca sofisticações na economia comportamental, argumentando que a emoção (95%) em detrimento da razão (5%) condiciona a decisão pouco estratégica do cidadão para judicializar suas demandas (KAHNEMAN, 2012). Ora, para cada 100 mil habitantes, 11.300 ajuizaram casos novos em 2021 (CNJ, 2022). Numericamente, 11% de cada grupo de 100 mil habitantes obviamente não se mostra como um percentual excessivo. Para dizer o mínimo, muitos conflitos não geram estatística (litigância contida). Segundo, o Relatório Índice de Acesso à Justiça (CNJ, 2021) deixou claro, ao final, que o acesso à justiça se dá na medida da escolaridade e do poder aquisitivo da população, ou seja, são inúmeros os obstáculos que distanciam e precisam ser transpostos pela população mais vulnerável para acessar o sistema de justiça. Por fim, os indicadores sociais são alarmantes. Além da distinção de renda e o tipo de ocupação entre pretos, pardos e brancos, cerca de 80% da população ocupada ganha até três salários mínimos (IBGE, 2022). CONSIDERAÇÕES FINAISA quem serve a padronização de critérios para a concessão da gratuidade? Se os direitos são isonômicos, por que sua reivindicação deve ser seletiva? Quem de fato está usando de forma indiscriminada o sistema de justiça?Qualquer política pública que proponha a padronização objetiva da concessão da gratuidade tornará o acesso à justiça um privilégio de classe. Ademais, para “racionalizar” o sistema, a mirada deve estar lançada sobre os grandes litigantes, o que inclui o papel regulamentador do Estado. Notadamente não se mostra eficiente suportar o risco do problema social que retorna ao Estado na forma de litígio, onerando duplamente os cofres públicos. Os mais vulneráveis não devem pagar essa conta.Os discursos de pós-verdade bradam narrativas que não resistem a uma única pesquisa empírica. O acesso à justiça não pode ser um privilégio, tampouco medido pela cor da pele, pelo saldo bancário ou pelo CEP do cidadão. O acesso à justiça não é mérito e tampouco sorte, mas sim a máxima expressão da nossa dignidade e da nossa democracia (SANTOS, 2023). REFERÊNCIAS ALVES, Cleber Francisco. Justiça para Todos! Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BRASIL, CNJ. Relatório Justiça em Números. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/> Acesso em: 09/Jun/2023. BRASIL, CNJ. 100 Maiores Litigantes. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 27/Dez/2020. BRASIL, CNJ. Diagnóstico das Custas Processuais praticadas pelos Tribunais. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/11/relatorio_custas_processuais2019.pdf>. Acesso em: 01/Fev/2021. BRASIL, CNJ. Índice de Acesso à Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/02/Relatorio_Indice-de-Acesso-a-Justica_LIODS_22-2-2021.pdf Acesso em: 09Jun2023. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. GALANTER, Marc. Por que quem tem sai na frente: especulações sobre os limites da transformação do direito. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/25816>. Acesso em: 26/Set/2020 IBGE. Desigualdades Sociais por cor ou raça no Brasil, 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101972. Acesso em: 09Jun2023. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. SANTOS, Karinne Emanoela Goettems dos. Gratuidade, litigância excessiva e gaslighting: responsabilização perversa dos vulneráveis e restrição do acesso à justiça. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 46, n. 2, 2023. Disponível em: https://revistas.ufg.br/revfd/article/view/67592. Acesso em: 11 jun. 2023. SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. WATANABE, Kazuo. Acesso à ordem jurídica justa. Belo Horizonte: DelRey, 2019.
Palavras-chave
Litigiosidade; Gratuidade; Políticas Públicas; Descompassos; Acesso à Justiça.PDF Todos os trabalhos desta edição