Anais EnAJUS 2023
ISSN 2674-8401
“Privatização” e Digitalização da Justiça: Velhos e Novos Problemas?!
Autoria: Ricardo Lopes Dinis Pedro, Miguel Lopes Romão, Pedro Miguel Alves Ribeiro Correia,
Informações
Sessão 3 - 23/10/2023, 14:00
Mediação: Tomas de Aquino Guimaraes (Universidade de Brasília)
Resumo
§1A administração da justiça contemporânea caracteriza-se por ser desenvolvida não apenas por funcionários ou agentes públicos, mas também por privados sem qualquer vínculo orgânico aos Tribunais ou à Administração Pública o que convoca novas particularidades, desde logo, a conjugação dos interesses privados com o interesse da administração da justiça – enquanto função essencial do Estado e pilar fundamental do Estado de Direito.Acresce que o fenómeno da “privatização da justiça” vem a gerar novos focos de preocupação com a digitalização da administração da justiça, na medida em que, em face da falta de expertise pública para o desenvolvimento de soluções digitais, desde logo, por via da implementação de algoritmos, se contratam estes serviços a privados - detentores (ou não) do conhecimento do funcionamento do sistema e da solução informática - e que, por vezes, na situação de impugnação judicial para conhecimento do funcionamento do algoritmo invocam segredo. §2De entre os privados mais comumente aceites no exercício de funções de administração da justiça, destacam-se os jurados e os juízes sociais, que são os privados admitidos a participar na administração da justiça que maior relevância assumem do ponto de vista constitucional, considerando-se a sua participação como um modo de democratização da justiça, por via do acesso destes ao exercício da função jurisdicional. Apesar das diferenças que se estabelecem entre a atividade destes privados e a atividade dos juízes profissionais, a verdade é que tal atividade comunga das tarefas da função de julgar; resulta de delegação constitucional e é configurada pelo legislador ordinário como serviço público obrigatório.Mais recente no ordenamento jurídico português é a figura do agente de execução, enquanto um privado que participa sobretudo no processo executivo civil e vem assumir as competências da secretaria judicial no processo executivo, cabendo-lhe a condução deste. Por outro lado, está sujeito a um estatuto difícil de definir unitariamente (atendendo ao regime relativo à forma de designação, incompatibilidades, impedimentos, deveres, substituição e destituição a que está sujeito). A análise do exercício das tarefas que lhe estão incumbidas reflete um vínculo misto de direito privado e de direito público, reunindo características de “mandatário” do credor e de oficial público. A um resultado idêntico se chega após a análise do estatuto legal desta figura, o que nos levou a concluir que se está perante um particular no exercício de funções públicas próprias dos tribunais. Por seu turno, mudanças ocorridas entre os anos 2000 e 2004 converteram os notários, até então exclusivamente cargos públicos em Portugal, em profissionais privados, mesmo que sujeitos a uma “dupla tutela” da Ordem dos Notários e do Instituto dos Registos e do Notariado; e introduziram, em paralelo ou em momento prévio a eventuais processos judiciais, a figura do mediador, privado, designadamente em matérias de família, laborais e na justiça penal.Outro privado da administração da justiça é o administrador judicial, que surge com a desjudicialização parcial do processo de insolvência. Esta figura que a lei refere como “servidor da justiça e do direito” desenvolve funções de matriz processual e de gestão, emergindo como um dos órgãos mais importantes do processo de insolvência e revelando um estatuto próprio (do qual se destacam as seguintes características: inscrição em lista oficial, sem que tal lhe garanta a qualidade de agente ou qualquer remuneração fixa; exercício de tarefas por tempo indeterminado e sem limite de processos; equiparação ao agente de execução nas suas relações com o Estado; poder de substabelecer; sujeição a um regime de incompatibilidades e suspeições complexo, equivalente ao dos juízes e ao dos titulares de órgãos sociais; sujeição à fiscalização de uma entidade pública de controlo e acompanhamento e à substituição e destituição pelo juiz).Ainda outro privado que se pode encontrar na administração da justiça é o perito, que surge pela necessidade de conhecimentos especializados que em regra o juiz não possui por via da elaboração de um relatório, no qual estes emitem a sua opinião técnica sobre a missão que lhes foi confiada. A admissão de peritos privados encontra-se prevista, nomeadamente, no processo civil, onde se exige o cumprimento diligente das suas funções sob pena de multa ou mesmo de destituição pelo juiz do processo. Acresce que, não se deve olvidar o contributo, ainda que instrumental, oferecido por privados que exercem funções de intérpretes, assessores técnicos e depositários judiciais privados que prestam um serviço ao tribunal num determinado processo. §3Por fim, é de destacar que a implementação da administração da justiça eletrónica tem sido outro dos resultados das reformas da justiça em vários países – fenómeno ao qual Portugal não é alheio - no sentido da modernização da administração da justiça, e que visou o uso de novas tecnologias de comunicação e informação nesta área. Acresce que, mais recentemente, com o desenvolvimento de políticas públicas no sentido da implementação de sistemas de inteligência artificial (IA) na administração da justiça ou de algoritmos digitais, que em estádios mais avançados permitem desenvolver algoritmos ou ser treinados sistemas para replicar valores humanos como justeza, responsabilidade e transparência surge um novo foco de problemas para a ciência jurídica. O uso de sistemas de IA no exercício da administração da justiça pública não é isento de dúvidas, sobretudo à medida que se pretende que tais sistemas visem substituir a atividade reservada ao juiz (humano) – uma “jurisdição inteligente”. Ou seja, sempre que se vai além dos já estabilizados meios processuais eletrónicos e se pondera a implementação de algoritmos e outros sistemas de IA na produção da decisão judicial novos riscos emergem e ao mesmo tempo novas barreiras devem ser tidas em conta. Mesmo sem chegar a esse cenário mais radical, a verdade é que o uso de sistemas de IA na atividade auxiliar à administração da justiça se torna numa medida cada vez mais comum e também não é menos verdade que muitos dos sistemas públicos de administração da justiça não dispõem de conhecimentos técnicos próprios para a criação, desenvolvimento, manutenção e auditoria de tais sistemas de IA, pelo que terão de recorrer ao setor privado. Surge, assim, um novo privado na administração da justiça que, em última instância, pode ser o proprietário do sistema, prestando por determinado período um serviço ao setor da administração da justiça. Destarte, para além do problema geral da compatibilização dos interesses próprios do privado com o interesse público da administração da justiça, surge a eventual dependência técnica em relação a este privado, o que não pode deixar causar preocupações jurídico-políticas, nomeadamente ao nível da perda de soberania e do acesso público ao código fonte ou outros elementos necessários ao conhecimento do funcionamento dos algoritmos da justiça, desde logo, em face do segredo comercial judicialmente invocado pelo privado.
Palavras-chave
Administração da Justiça; Sistemas de Inteligência Artificial; Políticas Públicas; Privatização da Justiça; Sistema de JustiçaPDF Todos os trabalhos desta edição