Anais EnAJUS 2024
ISSN 2674-8401
POLÍTICA ANTIMANICOMIAL DO PODER JUDICIÁRIO: RELATO DE EXPERIÊNCIA DA UNIDADE PSIQUIATRA DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO DO RIO GRANDE DO NORTE
Autoria: Hilderline Câmara de Oliveira, Franklin Horácio Soares de Castro, Natália Mendonça de Paiva
Informações
Sessão 22 - 27/11/2024, 14:00
Mediação: Jessica Traguetto Silva (Universidade Federal de Goiás)
Resumo
O presente relato de experiência tem como escopo refletir a respeito da efetivação da Resolução nº487de 15 de fevereiro de 2023 do Conselho Nacional de Justiça mediante a extinção da Unidade Psiquiatra de Custódia e Tratamento do Rio Grande do Norte (UPCT). Ela funciona no clássico modelo de manicômio judiciário, os chamados “hospitais de custódia”, com um corpo de policiais penais permanentemente para manutenção da custódia e equipes de saúde contando com enfermeiros e técnicos de enfermagem, assistente social, psicólogo, psiquiatra e farmacêutico atuando em regime de plantão eventual. Sendo os técnicos de enfermagem a única categoria profissional que se reveza para manter a presença 24h, todos os dias. A UPCT abriga as pessoas com medida de segurança detentiva em celas distribuídas em dois pavilhões e comportando no máximo dois por cela. Sua lotação, antes da referida resolução, chegava a 46 pessoas. Atualmente, com a intensificação do processo de desinternação, existem 21 internos. A Resolução nº487/2023 do CNJ determinou a instituição da política antimanicomial do poder judiciário tendo como implicação o fechamento definitivo da UPCT e a obrigação de garantia de um processo de desinstitucionalização para os seus egressos. Isso significa que os pacientes desinternados da UPCT precisam ser reinseridos em modo de vivência comunitária em liberdade, nos seus territórios de referência, amparados e cuidados pelas políticas públicas de proteção social e de saúde. Tendo como a principal delas a política pública de saúde mental, por meio da Rede de Atenção Psicossocial. Dentro dessa rede alguns componentes e pontos de atenção em saúde mental são de fundamental importância para o cumprimento efetivo da desisntitucionalização desses egressos, que são o Centro de Atenção Psicossocial, os componentes da Atenção Primária à Saúde, o Serviço Residencial Terapêutico, a rede de urgência e emergência e os leitos de saúde mental em hospital geral. O CAPS é o principal responsável por ofertar tratamento especializado em saúde mental e articular o cuidado em rede junto, em especial, a APS. Logo, esse relato de experiência diz respeito a atuação psicossocial junto a essa realidade da UPCT, suas peculiaridades e o atravessamento imposto pelo advento da Resolução nº487 do CNJ realizado pela atuação conjunta dos profissionais do serviço social, da psicologia e de estágio em psicologia. Portanto o desafio consistiu em cuidar dos pacientes da UPCT, considerando que em essência são pessoas com medida judicial de internação para tratamento compulsório em saúde mental em modalidade detentiva e, logo, dentro dessa perspectiva, não são apenados e sim pacientes. O respaldo na literatura especializada sobre o modelo de atenção da política brasileira de saúde mental em relação a pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, foi o maior orientador de como prestar alguma atenção psicossocial, em diferenciação do modelo manicomial, apesar dos limites impressos pelas características asilares da UPCT. Foram realizadas atividades de escuta especializada individuais e coletivas com os pacientes em dependências administrativas, bem como dentro dos pavilhões e celas, inclusive para aqueles com dificuldade de adesão ao tratamento psicossocial ou que estavam em algum momento de instabilidade psíquica. Houve atenção as demandas sociais dos pacientes relativas a documentação, benefícios financeiros ou outras questões de ordem de acesso ou garantia de direitos diante da condição de privados de liberdade. Foram realizadas diligências para compreensão da dinâmica e do perfil socioeconômico do contexto familiar do qual o paciente era oriundo. Assim como atendimento aos familiares e pessoas de referência dos pacientes nesse sentido socioeconômico, mas sobretudo na busca do fortalecimento ou restabelecimento de vínculos emocionais. Daí foram realizadas investigações, conversas, buscas ativas e visitas domiciliares. Foram até feitas articulações com gestores da área da saúde e assistência social para elaboração de uma estrutura adequada no território e no seio familiar para o recebimento do paciente. No entanto, com o surgimento da Resolução nº487/2023 do CNJ a dimensão da desinternação e a necessidade de um processo de desinstitucionalização em que todos os pacientes sejam direcionados para acolhimento nos territórios de modo satisfatório e com responsabilidade, fora da possibilidade de encarceramento, se torna uma realidade e um cenário a ser organizado em um curto espaço de tempo. Esse desafio à primeira vista pode parecer injusto, mas vem forçar que seja tomada a medida de substituição de um modelo anacrônico e ineficiente de tratamento que é o cumprimento de medida de segurança em regime manicomial e em “hospital de custódia”. Vindo finalmente dar cumprimento ao que já clamava a Lei Federal nº10.216/2001; as Resolução CNJ nº113/2010 e a Recomendação CNJ nº35/2011 que objetivavam adequar a atuação da justiça penal aos dispositivos da Lei nº 10.216/2001 e as Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária nº04/2010 e nº 05/2004 no sentido da aplicação dos princípios da Lei Federal nº10.216/2001 à execução da medida de segurança, inclusive prevendo que o Poder Executivo, em parceria com o Poder Judiciário, iria implantar e concluir, no prazo de 10 (dez) anos, a substituição do modelo manicomial de cumprimento de medida de segurança para o modelo antimanicomial, o que se encerrou em 2020 sem ter havido qualquer providencia efetiva de cumprimento. O desafio que antes era restrito a um esforço dessa equipe psicossocial e de uma direção sensível da UPCT, com todas as suas limitações, ganha com a referida resolução, uma dimensão extraordinária demandando um esforço de integração intersetorial do poder judiciário com as gestões do poder executivo, em especial nas áreas da saúde, assistência social e direitos humanos. Os elementos mais sensíveis sobre os quais a resolução nº487/2023 e seus prazos demandam são sobre os pacientes da UPCT com pouca autonomia ou capacidade de protagonismo sobre suas vidas, sem pessoas de referência, sejam parentes ou não, ou com vínculos muito inconsistentes que não possibilitam uma oferta adequada de moradia ou tutela. Desse modo para que a solução com fechamento da UPCT não seja para estes uma transinstitucionalização que reproduza o modelo manicomial, vai ser preciso um esforço concentrado de mobilização e articulação integrada para a construção de possibilidades inventivas de residencialidade; curatela; garantia de benefício financeiro ou trabalho e renda; olhar diferenciado no acompanhamento pelas políticas públicas de tratamento e cuidado no território e um eficiente esquema de monitoramento e avaliação de tudo isso à medida que for ocorrendo na prática.
Palavras-chave
política pública de saúde mental, direitos, acesso à justiça.PDF Todos os trabalhos desta edição